O desafio de amar "o outro".
A loucura, dizem os manuais, é um distúrbio da mente. Mas desconfio que ela começa antes disso — no instante em que nos separamos de nós mesmos. Quando deixamos de nos reconhecer no espelho da vida, quando não vemos mais nosso rosto refletido no outro, nem o outro nos nossos olhos. É aí que o nó que nos sustentava se desfaz, e passamos a vagar dentro da própria pele como se fôssemos hóspedes estranhos.
É dessa desconexão do eu que nascem as guerras com o outro — não só as que estouram entre nações, mas também aquelas silenciosas, camufladas, que moram entre irmãos, dentro de casa, dentro da cabeça. Historicamente, nenhuma guerra começou com sangue sem antes ter nascido na ideia do "eu não sou você."
Por outro lado, a paz só pode existir a partir do reconhecimento de que "eu também sou você." Ser capaz de ver no outro um igual é o que nos humaniza, imprime em nossa consciência as necessárias lições de empatia. Perceber que não estamos sós é um sinal de lucidez e sabedoria — talvez o maior sinal de saúde mental que exista.
A natureza entende isso melhor do que nós. Veja uma folha, por exemplo. Pequena, modesta, quase invisível no contexto da floresta. Mas ela não é apenas parte: é a própria natureza. Está no caule, na flor, no fruto e até no sopro da semente. Leva em si não só fibras, clorofila e água, mas também o sol que a aquece, a nuvem que a molha , o vento que a embala. A folha sabe que não existe sozinha — e nem tenta.
E quando chega o tempo da queda, não há grito, não há revolta. Ela solta-se da árvore com uma docilidade quase poética. Não questiona o destino, não exige explicações. Apenas dança, seguindo o compasso do vento, como quem confia no invisível. É uma despedida serena, de quem sabe que tudo faz parte de um fluxo maior.
Essa folha nos ensina que também somos parte — de algo muito maior, que pulsa através de nós. Pensar-se isolado disso é delírio. Toda ideia de separação, de individualismo absoluto, é uma forma de loucura. Por isso os sábios sempre disseram: amar ou odiar “os outros” é ilusão. Porque, no fim, não existem outros.
Somos um só organismo, uma só vida, um só cosmo. A saúde está em reconhecer isso. E a lucidez, talvez, seja apenas a capacidade de lembrar que estamos juntos nessa dança. Eu afeto e sou afetado. Transformo e sou transformado. E quando não conduzido pelo ego, a transformação é sempre positiva, de bem comum, de construção, nunca de destruição em causa própria.
E então, no silêncio onde antes havia conflito, desfia-se a reconciliação.
Com o outro, com o mundo, e principalmente, consigo.
Fios delicados de aceitação, compreensão e amor vão costurando novamente o tecido da existência comum.
Não há mais “nós” e “eles” — há apenas o nós, inteiro, entrelaçado, indivisível.
E o amor, enfim, deixa de ser desafio para se tornar caminho.
Francieli Karini Tomassevski Arrosi