Alceu A. Sperança
Avô e neto quase nunca se encontram, mas com os bombardeios e a interminável guerra na Ucrânia, pela primeira vez em muitos anos os dois sentem algo em comum: medo. E agora o avô e o neto estão na mesma sala, sonhando com um mundo melhor para disfarçar o medo:
N - Vovô, o que um metido a sabe-tudo como você me diz sobre essas guerras em todo canto?
A - Os profetas contemplam o futuro com pessimismo. Eu, não!
N - Você acha que vamos sair vivos dessa?
A - Você escapando já está bom.
N - O mundo tem tudo para acabar, com essa guerra de falsas religiões e falsos deuses.
A - Os sistemas políticos que causam as guerras é que precisam acabar.
N - Mas pra isso não seria necessária uma revolução?
A - Sim, mas os políticos vendem a ideia de que eles são os revolucionários.
N - Como, se são os mesmos de sempre e só pioram tudo?
A - São os mesmos porque eleições não resolvem nada. É trocar seis por meia dúzia.
N - Os governos estão desmoralizados. São incapazes de resolver problemas.
O povo merece
A - Mas já notou que o governo não controla mais as taxas de juros, não tem maioria no Congresso nem domina a Justiça?
N - Putz! Governa cada vez menos!
A - Mas a revolução só virá quando a humanidade entender que os sistemas de governo até hoje testados falharam miseravelmente.
N - Mas porque a revolução não vem logo e acaba de vez com esses farsantes?
A - Como cada povo tem o governo que merece, sofre com ele até conseguir dar um salto adiante.
N - Então é isso que a gente merece? Bombas pra todo lado, os povos se ferrando por manter sistemas idiotas e os inocentes sofrendo?
A - São sinais de que a velha ordem está morrendo. Por que o capitalismo é dominante hoje? Porque fez a sua revolução.
N - Então só será substituído por outra revolução, é isso?
A - Sim, mas atenção: a revolução sempre nasce da crise do sistema que vai destruir e sempre conserva o seu melhor.
N - Como assim?
A - O sistema primitivo, de caça e pesca, foi superado pela revolução agrícola, mas manteve as conquistas do sistema anterior.
N - Do mesmo jeito que o capitalismo deu fim ao feudalismo e manteve as conquistas da caça, pesca e agricultura?
E o tal do Comunismo?
A - O novo sempre aproveita e melhora o que herda do velho. O que vier do capitalismo será algo melhor.
N - Como o quê, por exemplo?
A - Antes, só ricos tinham ações na Bolsa. Hoje, um mendigo consegue com esmolas comprar ações, financiar palácios e mansões via fundos imobiliários e a custear a mais moderna produção com fundos agrícolas.
N - Mas isso não é comunismo? Mendigo financiar mansões e grandes plantações nunca foi possível antes.
A - O nome que se dá a uma coisa é menos importante que a coisa.
N - Aquela história chinesa de que não importa a cor do gato, desde que cace o rato?
A - Tudo será capitalismo até as pessoas reconhecerem que o novo chegou.
N - Mas como reconhecer a mudança?
A - É difícil. Veja o Brasil. Todos achavam que o presidente Bolsonaro ia ser uma feroz Thatcher transformadora e ele não mudou nada. Achavam que Lula ia socializar o país, mas, ao contrário, o Brasil ficou ainda mais capitalista.
N - Então nada mudou?
A - Mudou que desde Michel Temer não há mais presidentes mandões como Vargas e os militares perderiam a honra se traíssem seu juramento à Constituição.
N - Os presidentes não mandam mais?
A - Os presidentes agora só viajam e falam pelos cotovelos, como camelôs.
Presidencialismo morreu
N - Os presidentes são um fracasso, mas só se fala neles.
A - Teatrinho eleitoral, porque o presidencialismo à moda antiga morreu com a cassação de Dilma e a posse de Temer.
N - Então quem manda mesmo é o Congresso.
A - E no Congresso quem manda é o Centrão.
N - Por que as pessoas ainda acham que eleger presidente muda alguma coisa?
A - É a ilusão eleitoral. Alguém inventou que o voto é uma arma e muita gente ainda acredita nisso.
N - Então não resta mais nada em que acreditar.
A - Crenças são paralisantes. Eleições só mudam os nomes dos que viajam, seus slogans e propagandas.
N - Mas há diferenças a cada quatro anos.
A - Sim, porque a burocracia se adapta às circunstâncias mundiais. No passado, por exemplo, trabalhar era humilhante.
N - Não! Quando é que trabalhar foi humilhante?
A - Lidar com gado e cavalos era motivo de orgulho, mas trabalhar na agricultura era atividade humilhante, reservada a deficientes e escravos.
Imigrantes trazem o orgulho
N - Que coisa! E quando isso mudou?
A - Com a vinda dos imigrantes, no fim do século XVIII. Eles trouxeram a noção de que trabalhar com o agro é motivo do máximo orgulho.
N - Cáspite! E é, pois alimentam os povos de todos os continentes e garantem a riqueza do Brasil.
A - Mas logo, muito logo, trabalhar voltará a ser humilhante.
N - Ah, vovô, não fique gagá antes do tempo. De que jeito?
A - É fatal. O desenvolvimento da tecnologia trará novamente a noção de que trabalhar, seja no que for, é humilhante.
N - Vai ter que explicar isso.
A - A maioria dos empregados logo não terão mais empregos. Todo trabalho braçal será entregue a máquinas e robôs. A Inteligência Artificial substituirá o trabalho dos cérebros humanos.
N - Como as pessoas sem empregos vão viver?
A - Haverá um ganho mínimo para que todos sobrevivam: a Renda Universal.
N - Tem gente dizendo que o Bolsa Família transforma os pobres em vagabundos.
A - O objetivo é esse: sossegar os pobres. Sem empregos, a Renda Universal para todas as pessoas evita que a criminalidade exploda.
N - Sobrará algum emprego?
A - Talvez algumas bundas sujas ainda sejam limpas por gente querendo ganhar um extra durante um certo tempo.
N - Ah, as tarefas humilhantes.
A - Também será humilhante ficar doente. A ciência estará tão avançada que só quem tiver dinheiro poderá manter a saúde e até resolver como quer ir para o céu ilusório em que acredita.
Paraíso comprado no Pix
N - Vai pagar a decoração do céu?
A - Sim. Vai descrever como quer que o paraíso seja e o resto a tecnologia providenciará.
N - Vida eterna, então?
A - O sujeito se sentirá eterno desde que adoeça. Paraíso hipnótico ao gosto do freguês. Mas quem tiver só a Renda Universal e gastar tudo em pinga e churrasco será prato cheio para as superbactérias.
N - Bah, vai encomendar o inferno... Mas então a Renda Universal não vai acabar com as desigualdades?
A - Não, porque alguns são mais iguais que os outros, como dizia Millôr.
N - Assim só vai sobreviver quem for encostado na Previdência e tiver herança.
A - Até para limpar latrinas e trocar fraldas a Inteligência Artificial dará um jeito.
N - Então meus filhos não vão precisar trabalhar?
A - Ninguém mais vai trabalhar como agora. Já te contei que existe riqueza suficiente no planeta para cobrir a Terra inteira de ouro com meio metro de espessura?
N - Internem o vovô!
A - Em alguns lugares já existe ouro vazando nos quintais. É só coletar e fazer dinheiro.
N - Então todo mundo será rico?
A - Com a Inteligência Artificial potencializando a tecnologia, toda riqueza possível estará ao alcance de todos.
N - As guerras acabarão?
A - Não haverá mais pelo que lutar.
Sossegue: ainda vai trabalhar muito!
N - Então posso relaxar, não preciso mais estudar nem me treinar para o trabalho?
A - Não se iluda: quem relaxar vai morrer à míngua. Renda Universal não paga dívidas, e todo mundo vai se endividar. Ainda será preciso ralar muito para quitar as dívidas e chegar à prosperidade.
N - A prosperidade virá?
A - Depende. O salário-mínimo em 1995 era cem reais. Na época, quem ganhava 1.500 mangos era próspero. Hoje não vence pagar dívidas.
N - Os governos incompetentes eleitos a cada quatro anos prometem salários dignos, mas só pioram as coisas.
A - E dão golpes para continuar no poder.
N - Então o jeito é estudar e trabalhar duro.
A - E com robôs roubando empregos humanos a pobreza e a injustiça ainda vão persistir por algum tempo.
N - Até a revolução chegar?
O avô tosse convulsivamente, o neto o socorre, desesperado. Ouve-se um estrondo e a casa cai. O medo atrai desgraças. (Ilustração: Mescla)
Alceu A. Sperança é escritor e jornalita - alceusperanca@ig.com.br