É importante lembrar o significado de Getúlio Vargas para a criação do Brasil moderno, independentemente de suas posições políticas em alguns temas. Daniel SB trouxe a baila o tema, ao divulgar um texto de Paulo Gala sobre Getúlio. Esse que se segue:
"Você já parou para pensar por que um presidente que morreu há 70 anos ainda causa tanto incômodo?
Getúlio Vargas foi derrubado duas vezes. Sofreu boicote dos Estados Unidos. Foi atacado pela grande imprensa. Enfrentou resistência da elite econômica. E mesmo assim, criou praticamente tudo que transformou o Brasil de economia colonial em potência industrial. A CSN, a Petrobras, a Vale, a CLT, o Ministério do Trabalho, o BNDES, a política de substituição de importações.
Nenhum outro presidente brasileiro teve capacidade de transformação estrutural comparável.
Hoje vou te mostrar exatamente o que ele construiu — e por que essas 7 criações ainda incomodam tanto quem prefere um Brasil subordinado.
Vamos direto ao ponto.
A CSN nasceu quando todos diziam que o Brasil não tinha capacidade de produzir aço.
A elite econômica da época ridicularizava a ideia.
“O Brasil deve seguir sua vocação agrícola”, diziam. Era o mesmo discurso que Adam Smith usou para tentar impedir a industrialização dos Estados Unidos no século XVIII. “Plantem algodão, não construam fábricas.”
Getúlio ignorou.
Negociou com os alemães durante a Segunda Guerra Mundial, conseguiu transferência de tecnologia e instalou a CSN em Volta Redonda em 1942. Foi uma jogada geopolítica arriscada mas genial.
O Brasil passou a produzir seu próprio aço, criando a base para toda a cadeia industrial.
Compare com a Coreia do Sul décadas depois.
O General Park quis criar a POSCO, a siderúrgica estatal coreana. O Banco Mundial disse não. Recomendou que a Coreia seguisse sua “vocação” de plantar arroz. Park fez exatamente como Vargas: ignorou os conselhos externos e construiu uma das maiores siderúrgicas do mundo.
Resultado? A Coreia virou potência industrial. O Brasil, que já tinha a CSN funcionando desde os anos 1940, poderia ter chegado ainda mais longe.
A Petrobras foi criada quando as multinacionais do petróleo riam da nossa cara.
Chevron, Shell, ExxonMobil.
Nenhuma grande petroleira internacional acreditava que o Brasil tinha petróleo. Nunca fizeram investimento relevante aqui. Simplesmente não achavam que valia a pena.
Em 1953, Getúlio criou a Petrobras com o slogan “O petróleo é nosso”.
Foi uma decisão nacionalista que enfureceu o capital estrangeiro e a elite doméstica aliada a ele. Mas Vargas tinha clareza: recursos naturais estratégicos deveriam ser explorados por empresas nacionais.
Hoje, setenta anos depois, o Brasil descobriu mais de 300 bilhões de barris no pré-sal.
Uma Arábia Saudita no Atlântico Sul. E quem fez essa descoberta? A Petrobras, que distribui quase 200 bilhões de reais em lucros anuais. Tudo porque um presidente enxergou décadas à frente e não deixou multinacionais decidirem o futuro do país.
Nada desagrada mais os Estados Unidos do que um presidente nacional-desenvolvimentista.
E Getúlio era exatamente isso.
A Vale do Rio Doce institucionalizou a exploração soberana das nossas riquezas minerais.
Criada em 1942, a Vale nasceu com a mesma lógica da Petrobras: empresas nacionais explorando riquezas nacionais.
Minério de ferro, como petróleo e aço, é recurso estratégico. Quem controla esses recursos controla o desenvolvimento.
A visão de Getúlio era simples: o Brasil não pode depender de capital estrangeiro para explorar suas riquezas.
Por isso a Vale foi estatal desde o nascimento. Uma decisão que priorizou soberania sobre lucro imediato de poucos.
O Ministério do Trabalho nasceu para institucionalizar a relação entre capital e trabalho.
Antes de Getúlio, a relação entre patrões e empregados era pura força. Não havia mediação.
Não havia regras.
O mais forte simplesmente impunha suas condições.
A criação do Ministério do Trabalho tirou essa relação da esfera da força bruta e trouxe para a esfera da política pública. Foi revolucionário. Pela primeira vez, trabalhadores tinham uma instituição do Estado que reconhecia seus direitos e mediava conflitos.
É por isso que o Ministério do Trabalho surge nas intensas batalhas entre capital e trabalho do período varguista.
Getúlio entendia que conciliar interesses de classes era fundamental para o projeto de desenvolvimento.
Não era possível industrializar o país mantendo trabalhadores completamente desprotegidos.
A CLT protegeu trabalhadores urbanos pela primeira vez na história do Brasil.
Jornada de 8 horas. Férias remuneradas. Descanso semanal. Direitos trabalhistas básicos que hoje parecem óbvios foram revolucionários em 1943.
É verdade que a CLT não se estendeu aos trabalhadores rurais — Getúlio precisava manter o apoio dos cafeicultores. Foi uma conciliação típica do que historiadores chamam de “Estado de Compromisso”. Mas mesmo com esse limite, o impacto foi imenso.
E é por isso que até hoje a elite econômica quer acabar com a CLT. Porque ela limita exploração.
O BNDE foi criado para financiar o que o mercado privado nunca financiaria.
Bancos privados não financiam projetos de longo prazo e alto risco.
Nunca financiaram, nunca vão financiar. Por isso todos os países desenvolvidos têm bancos públicos de desenvolvimento.
→ Estados Unidos tinha.
→ Alemanha tinha.
→ Japão tinha.
→ Coreia tem até hoje.
Getúlio criou o BNDE em 1952 para financiar infraestrutura: energia, transporte, indústria de base. Projetos essenciais que permitiram a industrialização mas que nenhum banco privado toparia bancar.
Hoje existem mais de 400 bancos de desenvolvimento no mundo. O Brasil foi pioneiro.
E é exatamente por isso que tentam destruir o BNDES a cada oportunidade. Porque um banco público forte é um banco que não está subordinado a interesses privados.
A política de substituição de importações construiu capacidade industrial doméstica.
Esse foi o grande projeto.
Parar de importar o que podíamos produzir aqui. Desenvolver tecnologia nacional. Criar um mercado interno robusto.
Construir soberania econômica.
A crise de 1929 mostrou o caminho quando o comércio mundial colapsou e o Brasil ficou sem poder importar.
Mas Getúlio transformou necessidade em projeto deliberado. Não esperou o mercado resolver. Criou estatais, protegeu indústria nascente, investiu em infraestrutura.
O resultado? Entre 1930 e 1980, o Brasil teve taxas de crescimento de 9% ao ano em vários períodos.
Quadruplicou a renda per capita.
Nos anos 1980, o Brasil tinha produção industrial maior que China e Coreia do Sul somadas.
Quando abandonamos esse modelo nos anos 1990 com o Consenso de Washington, o crescimento parou. Projeto nacional virou palavrão. E o Brasil estagnou.
O golpe de 1954 teve interferência direta dos Estados Unidos.
Aqui está a parte que a elite prefere esquecer.
Em 1954, os Estados Unidos boicotaram o café brasileiro, deteriorando as contas externas e enfraquecendo Getúlio politicamente. Pressionaram os cafeicultores a se voltarem contra ele.
A grande imprensa orquestrou campanha difamatória brutal.
Por quê? Porque nada desagrada mais uma potência imperialista do que um presidente que constrói soberania.
A Petrobras enfrentava interesses norte-americanos. O BNDES financiava desenvolvimento autônomo. A CSN produzia aço nacional.
Vargas estava construindo capacidades que dariam ao Brasil condição de independência.
O suicídio de Getúlio evitou o golpe que viria dez anos depois.
A comoção popular foi tão intensa que adiou o projeto de subordinação. Mas em 1964, os mesmos atores voltaram. Derrubaram Goulart. Mudaram o modelo.
E o nacional-desenvolvimentismo foi sendo progressivamente desmontado.
Por que esse legado ainda incomoda tanto?
Porque expõe uma verdade inconveniente: o desenvolvimento brasileiro foi resultado de decisão política, não de livre mercado. As maiores empresas do país nasceram de projeto nacional deliberado.
O Estado coordenou, investiu, protegeu, construiu.
A narrativa liberal de que “mercado resolve tudo” e “Estado não funciona” cai por terra diante dos fatos. Taiwan, Coreia do Sul e China seguiram caminhos parecidos.
Todos com forte presença estatal coordenando o desenvolvimento.
Todos com bancos públicos, empresas estatais estratégicas, política industrial ativa.
Quando Taiwan e Coreia fizeram nos anos 1970 e 1980 o que Vargas tinha feito nos anos 1930 e 1940, viraram tigres asiáticos.
O Brasil, que estava à frente, resolveu jogar a toalha. Abandonou o Sistema Nacional de Inovação. Entregou empresas estratégicas.
Priorizou capital estrangeiro.
E por isso estamos onde estamos hoje.
Enquanto a China descobriu Getúlio Vargas e virou a maior economia do mundo, o Brasil decidiu esquecer quem foi Getúlio Vargas e virou caso de subdesenvolvimento crônico.
P.S. — “OK, MAS GETÚLIO É PASSADO. POR QUE ESTUDAR ISSO HOJE?”
Porque Taiwan e Coreia do Sul descobriram Getúlio Vargas nos anos 1970 e viraram tigres asiáticos. Fizeram exatamente o que ele tinha feito décadas antes: criaram estatais estratégicas, bancos de desenvolvimento, política industrial ativa e proteção de mercado interno. Enquanto isso, o Brasil — que estava à frente — resolveu abandonar esse modelo nos anos 90 e estagnou."
Paulo Gala: Graduado em Economia pela FEA-USP | Mestre e Doutor em Economia pela Fundação Getúlio Vargas em São Paulo | Foi pesquisador visitante nas Universidades de Cambridge UK e Columbia NY | Professor na FGV/SP há 20 anos.
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