Alceu A. Sperança
Um dos maiores prazeres da vida sempre foi protestar contra o governo. Difícil lembrar um só dia ou motivo pelo qual valesse a pena apoiar um governo, fosse municipal, estadual ou federal.
No máximo, o sujeito iludido, manipulado por narrativas de marqueteiros, procura se apoiar em um grupo temendo que outro, pior, possa causar problemas para sua família, negócios ou amigos.
Se você não apoiar o Rei Desbocado, o Rei Falastrão vai tomar sua casa. Ou se não votar no Falastrão, o Desbocado vai fazer do Brasil uma Venezuela. As duas coisas são impossíveis, mas mentir é a regra geral e há quem finja acreditar.
Não há qualquer razão realmente sensata para apoiar um governo, já que no Brasil todos são variações do mesmo Centrão de sempre. Assim, protestar contra ele serve de desabafo e saúde mental.
Desde que não seja com o ódio dos fascistas nem a raiva dos fracassados, porque aí a saúde mental já foi para o beleléu.
O fato objetivo é que protestar contra o governo é sempre a opção mais correta, diante das desgraças que ocorrem pelo mundo afora, causadas por ação ou omissão de governos, eleitos ou não, que sempre exorbitam, agindo como se fossem donos da nação. Ou do mundo, como quer Trump.
Terrorismo com a arma da burrice
Protestar na capital do Estado é uma experiência inesquecível. Todo protesto forte em Curitiba é saudado pelo governo de plantão com doloridas borrachadas.
Quem quer ter uma repressão da PM no currículo já sabe que o modo mais fácil é levantar uma bandeira justa, postar-se no Centro Cívico, abrir o berreiro e esperar as borrachadas.
Nada, entretanto, supera ocupar a Praça dos Três Poderes, em Brasília. Uma catarse coletiva, suprema demonstração de ardor patriótico, é a espera fervorosa pela imediata descida dos discos de funk e sofrência dos ETs salvadores.
Basta virar o celular para o cerúleo céu e clamar aos deuses extraterrestres descerem para salvar do xilindró os mobilizados em Brasília.
Os prazeres de levar borrachadas em Curitiba ainda continuam na ordem (ou desordem) do dia, mas o 8 de janeiro de 2022 pôs fim a qualquer possibilidade de um belo protesto em Brasília.
As cegadas, vandalismo, crimes cometidos por bandidos se autofilmando com confissões incríveis, criaram a imagem forte e indelével de que os ocupantes da Esplanada dos Ministérios e arredores são malucos incuráveis, candidatos a longas penas de prisão.
A alegria de agitar a bandeira nacional, carregar cartazes com memes contra as altas figuras da República, berrar slogans patrióticos e clamar pela adesão geral ao protesto deixaram de ser opções sensatas.
Brasília? De jeito nenhum!
Basta alguém propor: "Vamos a Brasília protestar?", para algum chato dizer: "Pra pegar vinte anos de cadeia por uma simples urinada dentro de um palácio? Eu não!"
Neste país insensato, até os hábitos saudáveis de ser contra o governo, protestar contra o Congresso e malhar o Judiciário viraram símbolos de terrorismo.
Depois do 8 de janeiro, quem se atrever a fazer protestos em Brasília será automaticamente incluído entre os tresloucados que evacuaram seus cérebros sobre os prédios e símbolos dos três poderes da República.
Talvez ainda seja possível fazer uma última e impune crítica ao STF, que proibiu beneficiários do Bolsa Família de gastar os caraminguás recebidos do Estado em apostas lotéricas (bets).
A jogatina é odiosa, claro, mas já que decidiram interferir na vida das pessoas ao arrepio da Constituição, por que não impedir papai de gastar o salário do mês em cachaça, bocha e damas de vida fácil? Mamãe aplaudiria e os filhos teriam mesada maior.
Fiquemos por aqui, para não alegarem que estamos transformando a bomba de chimarrão em arma de grosso calibre.
Obcecado por Juju I
Como cada um de nós tem alguma obsessão revelada ou oculta, a minha é que a surpreendente atuação do STF nos últimos anos é toda inspirada no imperador bizantino Justiniano I.
Tudo indica que o ministro Xandão e seus dignos pares encarnaram como cavalos, no bom sentido, aquele espírito gigantesco.
Se Justiniano fosse invocado de seu tempo, via Inteligência Artificial, e algum raro juiz assustado lhe perguntasse o que fazer diante da campanha diária de difamação movida na Net por interesses prejudicados pelas sentenças, o que ele diria?
"Siga as emendas, pequeno gafanhoto togado", ele provavelmente diria. "Siga as emendas e ponha os corruptos na cadeia".
A Nova Lava Jato vai limpar os cantos escuros de uma vez por todas ou cometer as mesmas cegadas da primeira? Não me atrevo a responder...
Patriota: você é verde ou azul?
Justiniano foi sem dúvida o mais competente governante, legislador e juiz de todos os tempos. Ainda assim, ao resistir ao golpe que sofria, ele quase sucumbiu à polarização entre verdes e azuis.
Ele só não fugiu do palácio com o rabo entre as pernas porque os EUA ainda não existiam e porque Teodora, sua esperta esposa, o segurou no trono, obrigando Juju a resistir firme ao golpe.
Se ele perdesse a cabeça com a polarização bizantina ninguém no futuro viria a considerá-lo tanto. Ele, o supremo de sua época, venceu e fez valer o que seria a lei por todos os séculos depois dele: "Manda quem pode, obedece quem tem juízo".
Juízo, gente! (Ilustração: Mescla)
Alceu Sperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br