A Mega da Virada bateu em R$ 1 bilhão e, como todo fim de ano, o Brasil inteiro resolveu ficar rico em pensamento. É um ritual cívico. A pessoa não ganha, mas planeja. Não compra a ilha, mas já escolhe o nome. Não muda o mundo, mas distribui justiça social no guardanapo do boteco.
Essa história sempre me puxa pela memória de um primo mais velho, já falecido, Deus o tenha. Ele aparecia de tempos em tempos lá em casa, em Califórnia, no Norte do Paraná. Figura boa, riso fácil, fama consolidada de não falar exatamente a verdade. Mas era um sujeito do bem, desses que a gente perdoa antes mesmo da mentira começar.
Eu tinha 11 anos e um talento especial para perturbar a ordem pública doméstica. Gostava de incomodar os moleques da idade e, com mais entusiasmo ainda, os mais velhos. Meu primo, por sua vez, tinha um vício discreto. Tomava umas doses de cachaça escondido da família e, depois, caía num sono profundo, quase filosófico.
Numa dessas tardes, depois de algumas “medicinais”, ele apagou no quarto. E eu, como todo menino que se preza, vi ali uma missão cívica. Acordar o primo. Cutucar. Chamar. Fazer barulho. Jogar água. Até que ele reagiu, meio bravo, meio suplicante, com a frase que entrou para a história da família.
“Fio, deixe eu dormir. Tô sonhando com os números da loteria!”
Aquilo me pareceu inadmissível. Como assim sonhar com os números e não compartilhar com a humanidade? Segui firme no meu atentado. Ele acordou de vez, perdeu o sonho, perdeu os números e, talvez por isso mesmo, nunca ganhou na loteria. Carrego essa culpa histórica comigo. Se eu tivesse deixado o homem dormir, quem sabe hoje eu escrevesse esta história de um iate.
A ciência diz que a chance de ganhar é de uma em cinquenta milhões. A matemática explica. A estatística sentencia. Mas o brasileiro ignora tudo isso com uma fé comovente. Porque a Mega da Virada não vende probabilidade. Vende imaginação.
É o único investimento que permite gastar seis reais e passar a semana inteira discutindo onde vai morar depois que “cair”. O dinheiro nem existe, mas o conflito familiar já começa. Um quer sumir do mapa. Outro quer ajudar todo mundo. Sempre tem alguém que decide continuar trabalhando “por prazer”, como se isso fosse plausível.
No fundo, ninguém joga para ganhar. Joga para sonhar acordado, sem culpa, com recibo oficial da Caixa. É um intervalo autorizado entre a realidade dura e a fantasia possível.
E você, faria o quê se ganhasse essa bolada de R$ 1 bilhão? Compraria silêncio, tempo, poder, sossego ou confusão? Eu, honestamente, deixaria meu primo dormir. Só para garantir.