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A quem interessa a narrativa do narcoterrorismo no Brasil?
A quem interessa a narrativa do narcoterrorismo no Brasil?
Por Administrador
Publicado em 31/10/2025 07:56
JUSTIÇA
Especialistas apontam que classificar facções como terroristas serve à extrema direita, abre portas para ingerências e desvia foco de soluções concretas para a violência

O termo narcoterrorismo ecoa com força após a megaoperação nos Complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro. Impulsionada por figuras como o governador Cláudio Castro (PL) e o Secretário de Segurança de São Paulo, Guilherme Derrite (PL), a narrativa que equipara facções criminosas a grupos terroristas levanta uma questão crucial: a quem realmente interessa essa classificação?

Para especialistas em segurança pública e relações internacionais, a resposta transcende o combate ao crime e aponta para uma calculada manobra política com objetivos domésticos e geopolíticos bem definidos.

“Narcoterrorismo”: instrumento político

Fonte: Foto: Acervo Pessoal

A estratégia se encontra em pleno andamento. Conforme revelado em matéria recente da CNN, o governo do Rio de Janeiro entregou um relatório ao governo de Donald Trump, defendendo que o Comando Vermelho seja classificado como uma organização terrorista. O movimento se alinha à proposta de lei “antiterrorismo” que o deputado federal licenciado Guilherme Derrite prometeu pautar na Câmara. Na quarta-feira, 29, em meio à repercussão da chacina no Rio, Derrite aproveitou para informar que também encaminhou aos norte-americanos informações sobre o PCC.

 

Para o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, Gilberto Maringoni, a adoção do termo “terrorismo” é um perigoso instrumento político.

“A classificação de terrorista é uma classificação que você dá ao inimigo que não negocia”, explica. Segundo ele, essa etiqueta serve para legitimar o extermínio, retirando o indivíduo do sistema de justiça e transformando-o em um alvo a ser neutralizado.

“O terrorista é um inimigo que está cometendo crimes e se ele não for detido, você tem que abater. Assim, quando você vai às comunidades do Rio de Janeiro e coloca todo mundo como narcoterrorista, essa gente é um potencial cadáver”, alerta Maringoni.

O jogo político interno e a fabricação do caos

Em nível nacional, a narrativa do narcoterrorismo funciona como um combustível para a extrema direita. Alberto Kopitke, Diretor Executivo do Instituto Cidade Segura e ex-diretor da Secretaria Nacional de Segurança Pública, avalia que a agenda ressurge em um momento de enfraquecimento de outros discursos.

“Na medida que eles perderam o tema da anistia, a questão do golpe, aí reside a grande agenda política da extrema direita. Isto pode fortalecer a extrema direita, politicamente falando, para disputar eleição, para criar estados de exceção”, afirma.

Essa visão é corroborada pelo jornalista Reynaldo José Aragon Gonçalves, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI). Em artigo, ele descreve a situação como uma “operação psicológica” para fabricar a sensação de colapso. “O cálculo é cínico. Com as eleições à vista e o bolsonarismo enfraquecido nacionalmente, a extrema direita busca um novo eixo de mobilização – e encontrou na ‘guerra contra o crime’ o terreno ideal”, escreve Gonçalves. Para ele, “o caos, portanto, não é um efeito colateral – é o produto”.

Maringoni vê a ação de Cláudio Castro como uma manobra para pressionar o governo federal. “É uma ação política de extrema direita, antes de tudo, pra tumultuar o processo eleitoral de 2026, e o alvo é, evidentemente, o Lula”, pontua.

A quem interessa a narrativa do narcoterrorismo no Brasil

Fonte: Foto: Igor Sperotto

Para Alberto Kopitke, a extrema direita tenta criar um estado de exceção de olho nas eleições, já que perdeu a pauta da anistia

Portas abertas para ingerência

Se internamente a estratégia visa ganhos eleitorais e o fortalecimento de um projeto autoritário, externamente ela busca alinhar o Brasil aos interesses geopolíticos dos Estados Unidos.

Kopitke destaca que a iniciativa – que envolve emplacar o termo “narcoterrorismo” – não é isolada. “É um movimento do governo americano que, ao decretar algumas organizações de narcotráfico como organizações terroristas, vem tensionando o México, a Colômbia, a Venezuela”, aponta.

Essa “cooperação” seria para mascarar, na prática, uma nova forma de intervenção. Gilberto Maringoni relembra a máxima do presidente americano Theodore Roosevelt, Speak softly and carry a big stick (Fale com suavidade, mas carregue um grande porrete).

Para ele, os EUA usam o “porrete” contra adversários diretos, como a Venezuela, e a “conversa mole” com o Brasil. No entanto, a aproximação se dá “com a faca no pescoço”, visando à subordinação.

O convite do senador Eduardo Bolsonaro (PL-RJ) para que a Marinha americana viesse ao Rio de Janeiro é visto por Maringoni como um exemplo claro dessa busca por aliança externa contra os interesses do próprio país.

Reynaldo Gonçalves chama essa tendência de “o regresso da Doutrina Monroe”, reciclada sob o disfarce de “cooperação antiterrorismo”. Ao adotar o léxico de Washington, o Brasil abre, segundo ele, “uma brecha jurídica e diplomática para que os Estados Unidos intervenham direta ou indiretamente”.

Uma distinção técnica ignorada

A quem interessa a narrativa do narcoterrorismo no Brasil

Fonte: Foto: Redes Sociais/ Reprodução

Ligações perigosas: o governador do Rio, Cláudio Castro (PL), com o deputado estadual Thiego Raimundo de Oliveira Santos Silva, o TH Joias, preso no dia 3 de setembro em operação da Polícia Federal, no Rio, acusado de lavar dinheiro para o Comando Vermelho

Do ponto de vista técnico, a equiparação é insustentável. Alberto Kopitke é categórico: “Não tem sentido nenhum, porque são dois tipos de organização diferentes”. Ele explica que as facções de narcotráfico, embora extremamente violentas, buscam se infiltrar e se beneficiar do sistema financeiro e da economia formal. Já as organizações terroristas possuem um objetivo ideológico de derrubar o Estado.

Banalizar o conceito, segundo ele, é um risco para a própria segurança nacional. “Qual é o grande problema? É se surgir um grupo terrorista, a gente não ter a capacidade depois de detectar que isto é um grupo terrorista. Você banaliza um instrumento de defesa do Estado”, argumenta.

Enquanto a narrativa do “narcoterrorismo” ganha tração, soluções concretas para a crise de segurança são deixadas de lado. Kopitke critica a falta de uma agenda robusta por parte do governo federal, o que abre espaço para o discurso extremista. “E aí onde tem espaço vazio, alguém ocupa, né?”, resume.

O fuzil e a hipocrisia de Trump

Para ele, o caminho passa pelo fortalecimento da inteligência policial e por ações focadas nos problemas estruturais, como o tráfico de armas. “O problema-chave do Rio de Janeiro se chama fuzil”, afirma Kopitke.

Ele aponta para a contradição no discurso norte-americano, que pressiona pela classificação de “narcoterrorismo”, mas se omite em relação a uma das principais fontes de poder das facções. “Veja, não tem uma medida, por exemplo, nessas que o governo americano falou sobre o tráfico internacional de armas, que leve em conta que uma parte importantíssima sai dos próprios Estados Unidos”, critica.

Na visão do especialista, uma cooperação efetiva começaria por impedir que esses fuzis chegassem ao Brasil, e ele traz a responsabilidade para o âmbito nacional: “Quem tem competência sobre tráfico internacional de armas, ou nacional? A Polícia Federal”, questiona, lembrando de operações bem-sucedidas realizadas no final da gestão de Flávio Dino no Ministério da Justiça.

Outro ponto central seria uma reforma do sistema penitenciário, origem e centro de comando das facções. “Por que que o governo não diz o seguinte: eu vou bancar a reforma do sistema prisional de todos os estados do Brasil. O PAC presídio. Pô, isso é uma agenda”, sugere.

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