A contundente derrota do governo Lula no Congresso Nacional com a derrubada do Decreto que restabelecia a cobrança de IOF sobre fundos exclusivos e investimentos no exterior não foi apenas um tropeço do Governo no Legislativo. Para analistas, trata-se de um movimento orquestrado que reúne setores do mercado financeiro e do Centrão com o objetivo de enfraquecer o presidente e reduzir sua competitividade eleitoral em 2026.
A votação que selou a derrota – 383 votos contra o decreto, mais do que os que aprovaram o impeachment de Dilma Rousseff –, escancarou a fragilidade da base aliada, inclusive entre partidos com ministérios no Executivo.
“Foi uma sinalização política muito clara: não vamos permitir que Lula construa força sem pagar um alto preço”, resume o economista Paulo Kliass, membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
Ele diz que o cenário atual é resultado direto de escolhas estratégicas do Governo na área econômica.
“Haddad entregou à Faria Lima a condução da política fiscal, esperando boa vontade do mercado. O que recebeu foi a rejeição explícita até mesmo de uma tributação leve sobre grandes fortunas no exterior”, avalia.
A trilha da autossabotagem
Kliass aponta três decisões do ministro da Fazenda como centrais para o isolamento do Governo: a manutenção de metas de superávit primário irrealistas, a fixação de uma meta de inflação de 3%, raramente alcançada nas últimas décadas, e a submissão ao novo arcabouço fiscal, que na prática reproduz a lógica do Teto de Gastos de Michel Temer.
“Essas armadilhas amarram a capacidade de resposta do Governo e dão combustível à narrativa de ineficiência. No momento em que o Executivo tenta avançar com qualquer medida que toque nos interesses da elite, é atropelado por um Congresso que já opera com lógica eleitoral”, alerta o economista.
A saída, para Kliass, passa por uma virada na política econômica. A pergunta que fica, segundo ele, é se Lula, pressionado pelo mercado e pelo Congresso, conseguirá retomar o rumo ou se seguirá refém de uma estratégia que, nas palavras de Kliass, “pavimenta o caminho para a direita voltar ao poder”.
O recuo fatal e as traições
Kliass: A saída passa por uma virada na política econômica
Foto: Jane Araújo/Agência Senado
O decreto do IOF, voltado à tributação de fundos de alta renda no exterior, foi desidratado após pressão direta da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e da Faria Lima. O recuo, formalizado por edição extraordinária no Diário Oficial, não impediu que o restante da medida fosse derrubado pelo Legislativo, ampliando a derrota do Governo.
“Foi uma tentativa tímida de justiça tributária, mas que o próprio Governo abandonou ao primeiro sinal de desconforto do andar de cima. E aí o Congresso foi lá e passou o trator em tudo”, diz Kliass.
A derrota no IOF também revela a disfuncionalidade da base governista. Partidos do Centrão, que ocupam pastas no Governo, votaram em bloco contra a proposta.
“63% dos deputados de partidos da base, excluindo PT, PCdoB e PSOL, votaram contra o Executivo. É um Governo com ministros cercado por adversários”, resume Kliass.
O caso mais emblemático foi o Progressistas (PP). Mesmo com ministério no Governo, teve 100% de seus deputados votando contra a medida.
“Esses partidos têm ministro, é uma loucura. Estão levando o Governo para o escanteamento”, avalia Kliass.
As prioridades invertidas
Enquanto isso, a mesma Câmara aprovou, sem cerimônia, o aumento no número de deputados federais de 513 para 531.
“Eles posam de guardiões da austeridade quando o alvo é o Governo, mas não cortam um centavo dos próprios privilégios”, critica.
Embora Kliass relativize o impacto financeiro direto do aumento de deputados, destacando que “150 milhões anuais não é nada muito expressivo, pois a Câmara tem um orçamento de 8,6 bilhões por ano”, ele aponta para o mau exemplo que isso representa diante do discurso de austeridade.
O economista destaca que o problema também está no corporativismo parlamentar que impede reformas necessárias:
“Tem uma defesa corporativista e aí é transpartidária, da absoluta maioria dos partidos. Na condição de deputado, eles não querem cortar na própria carne”.
Mais grave ainda, entende, é o controle que o Congresso exerce sobre o orçamento através das emendas parlamentares.
“Apenas de emendas impositivas do orçamento, são 40 e poucos bilhões. O poder dos deputados é muito maior do que o orçamento que eles têm para seu custeio”, explica Kliass. Ele diz que esse mecanismo virou a lógica de poder de cabeça para baixo.
“Antes de 2016, o Governo dizia: tem as emendas, mas eu só vou liberar se você votar assim. Agora é o contrário. São os parlamentares que dizem: eu só voto se você me liberar”.
2026 no horizonte e o povo não come PIB
Para Kliass, a estratégia por trás das derrotas legislativas do Governo é clara.
“Não se trata só de inviabilizar projetos. É um cerco ao próprio Lula, para que chegue em 2026 fraco, desgastado, e que a direita tenha caminho livre para lançar nomes como Tarcísio de Freitas.”
O receituário, segundo ele, lembra o que levou Haddad à derrota para João Doria em 2016, na disputa pela prefeitura de São Paulo.
“Ele fez um mandato austero, deixou caixa cheio, mas sem popularidade perdeu no primeiro turno.”
Apesar do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), para o economista a realidade nas ruas é outra. Esse descompasso, segundo Kliass, alimenta o desgaste social e político do Governo. “Lembrando aqui a nossa mestra, Maria da Conceição Tavares, o povo não come PIB. Quer ver emprego, salário decente, escola boa, remédio no posto. Sem isso, a base social do lulismo se distancia”, adverte.
Nesse contexto, os cortes em programas sociais e no reajuste do salário mínimo, consequência direta da política fiscal vigente, só ampliam a insatisfação. “Sem ruptura com a lógica da austeridade, o Governo corre o risco de entrar em espiral descendente, preso entre um Congresso hostil e um povo desiludido”, conclui Kliass.