Nas últimas décadas, houve uma transformação marcante nas expressões da direita política em diversas democracias ocidentais. O que antes era identificado com o liberalismo clássico – defensor da economia de mercado, do Estado de Direito e das liberdades individuais – vem dando lugar a uma direita com posições radicalizadas e com um perfil embrutecido que vai incorporando diferentes camadas de ódio ao sistema político, às garantias individuais, aos direitos das minorias, à ideia de equidade, ao sistema de freios e contrapesos; à vocação contramajoritária do Poder Judiciário; às evidências científicas e às políticas públicas inclusivas.
Para a extrema direita, as conquistas históricas das democracias liberais, a começar pelo compromisso em favor da tolerância e da diversidade, são uma “ameaça construída pela esquerda” e devem ser varridas em favor da “Nação”, do “Povo” e de “Deus”, claro.
Nos Estados Unidos, os partidos políticos compartilharam um consenso básico em torno do Estado de Direito. O Partido Republicano, apesar de suas diferenças internas e do seu grau de conservadorismo, representou o ideal do respeito à Constituição e à liberdade individual. Isso começou a mudar a partir dos anos 2000, e o surgimento do movimento Tea Party em 2009, com seu discurso antissistema, sinalizava uma inflexão. Com a vitória de Trump em 2016, essa guinada se consolidou. Trump rompeu com várias tradições republicanas, adotando um discurso agressivo contra as instituições democráticas, promovendo a desconfiança em relação à mídia, ao sistema eleitoral, às universidades e às Nações Unidas, e propondo políticas inimigas das minorias e um nacionalismo cada vez mais agressivo e ameaçador.
É esse novo perfil da direita que produz forte aumento da tensão social. Ao contrário do que seguem afirmando determinados “formadores de opinião” no Brasil sobre uma pretensa “polarização” entre direita e esquerda, o que há, verdadeiramente, são ataques cada vez mais fortes à democracia, o que envolve já tentativas malogradas de golpes de Estado, como o ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021 e a destruição das sedes dos Poderes em Brasília, em 8 de janeiro de 2023.
O movimento de extrema direita nos EUA, que inclui supremacistas brancos, neonazistas e os chamados “cidadãos soberanos”, reúne posições que sustentam o uso da violência para alcançar objetivos políticos. Entre 2010 e 2020, o movimento de extrema direita foi responsável por 73,3% de todos os assassinatos políticos nos Estados Unidos. Em 2018, essa estatística subiu para 98% (citado por Mason Youngblood, 2020). A retórica extremista se reproduz nas mídias sociais em todos os países, atuando em um processo de contágio induzido por algoritmos, o que tem feito com que especialistas em políticas públicas se refiram ao problema como uma “questão de saúde pública” e destaquem a necessidade de barrar um processo de adoecimento social em curso (Sanir et al., 2017; Weine e Eisenman, 2016).
O Brasil também passou por uma transição ideológica. Durante os anos 1990, os governos Fernando Henrique, do PSDB, representaram uma direita com inclinação liberal que atuava propondo reformas econômicas e de gestão, com compromisso com a democracia e valorização das instituições. Havia também um diálogo com setores mais progressistas no campo dos direitos civis. Esse cenário se alterou a partir de 2013, com a crise de representação política e os protestos de rua.
O impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, abriu caminho para a emergência de uma direita de perfil fascista, que resultaria no “bolsonarismo”. A força eleitoral dessa nova articulação, forjada nas redes sociais, fulminou os partidos tradicionais da direita liberal, PSDB e PMDB destacadamente.
O bolsonarismo é, nesse sentido, o fim do consenso democrático no Brasil, a exemplo do trumpismo. Assim como nos EUA, o bolsonarismo também alimentou uma base militante disposta a atos de confronto e que demandou nas ruas, por meses, que as Forças Armadas dessem um golpe, sob o olhar imbecilizado das instituições democráticas e com a nítida simpatia de políticos já contagiados pelo neofascismo.
Essa transição da direita liberal para a extrema direita agrega muitos riscos à ordem democrática. A desconfiança sistemática nas instituições, o discurso de ódio e a valorização da violência como solução política são ingredientes que criam o ambiente propício para atos de terrorismo doméstico e para a erosão do pacto civil. No caso brasileiro, aliás, penso que a provável condenação de Bolsonaro e seus aliados golpistas poderá ser o gatilho para atos de terrorismo doméstico, possibilidade para a qual as forças policiais devem estar muito atentas.
A extrema direita não é uma variação do conservadorismo tradicional. Trata-se de um fenômeno de natureza muito distinta, com estratégias e objetivos que desafiam os fundamentos do regime democrático. Reconhecer essa diferença – algo que também deveria orientar a tática da esquerda – é o primeiro passo para que sociedades democráticas possam responder com firmeza e lucidez aos desafios que ela impõe.