Uma pesquisa desenvolvida pelo Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Regionais e Desenvolvimento da Ufrgs comprovou que as agendas eleitorais costumam tratar menos de fome e mais de produção agropecuária, evidenciando um claro viés político-ideológico no enfrentamento de um problema concreto: a alimentação e a fome. As agendas eleitorais são montadas com os candidatos a partir dos lobbys de cada setor. A pressão do agronegócio na pauta dos candidatos é fortíssima e facilmente percebida pelo tamanho das bancadas ligadas ao setor.

Atualmente, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que em 2022 aumentou 24% em relação à legislatura anterior na Câmara dos Deputados alcançou a marca de 300 membros dos 513 deputados da casa, e engloba mais da metade e quase 60% dos parlamentares. Setenta e sete deles são do PL (mais de um quarto da nova composição da bancada ruralista na Câmara). No Senado, o crescimento foi de 20%, de 39 para 47 — diante de um total de 81 senadores, mais ou menos a mesma proporção da Câmara.

Entre 1994 e 2022, prevaleceram as propostas enquadradas na categoria “produção”, isto é, que se referem à infraestrutura da cadeia produtiva e ao estímulo à agropecuária. Este enfoque no agronegócio, por exemplo, foi amplamente debatido em partidos de direita e extrema-direita, e menos nos de esquerda. Para a autora do trabalho Ingrid Marques, essa abordagem está ligada à crença de que a maior produção solucionaria o problema da fome. O que não corresponde à realidade.

Além disso, o fato de o Brasil ser um país agroexportador também reforça essa discrepância em relação aos demais pontos da pesquisa. A pesquisadora ainda constatou que as categorias menos citadas nas propostas foram: acesso, que diz respeito ao preço dos alimentos e à renda; sustentabilidade, que trata sobre a manutenção da capacidade produtiva ligada à proteção ambiental; e agência, em que se propõem formas de participação civil e de empoderamento de grupos minoritários.

Quase 60% dos parlamentares da Câmara dos Deputados fazem parte da Frente Parlamentar da Agropecuária. PL, União Brasil e PP compõem mais da metade da FPA, com 166 deputados. PSD e Republicanos têm 26 deputados e o MDB, 24.

“A alma da fome é política”

Compreender como os partidos tratam a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) na agenda e se houve mudanças ao longo do tempo estavam entre as motivações da pesquisadora. “Isso permite melhorar nosso entendimento sobre a construção das agendas. A atenção é um recurso escasso, por isso é importante saber por que algumas coisas entram e outras não”, argumenta.

Segunda ela, na pesquisa foi possível identificar elementos que influenciam no processo, “como eventos focais (pandemia que impulsionou a discussão sobre fome), a própria ideologia partidária e como isso tudo opera a agenda política”, afirma Ingrid. Ela lembra que ideia da dissertação surgiu a partir de uma ideia do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, “A alma da fome é política”.

Agronegócio não é sinônimo de segurança alimentar

A SAN envolve múltiplas dimensões e, ao orientar as políticas públicas, favorece a criação de um sistema agroalimentar mais sustentável e saudável, com base na participação social e na valorização das identidades culturais. Ao longo da história brasileira, a SAN ganhou e perdeu lugar nas agendas governamentais. Conforme a pesquisa, essa variação da atenção dada ao tema está inserida no processo de criação de políticas públicas, o qual tem como uma das etapas o processo de formação de agenda (agenda-setting).

As agendas eleitorais, ou seja, os temas que recebem atenção dos candidatos durante as eleições, exprimem as prioridades escolhidas pelos políticos e as ideias que podem avançar nas agendas governamentais. Nas oito eleições analisadas por Ingrid, poucas propostas utilizaram o termo segurança alimentar e nutricional, mais complexo e multifacetado. “Se utiliza mais ‘segurança alimentar’ porque ele já é um conceito datado. Ele fala mais de produção, não se aprofunda tanto [na questão nutricional] quanto o termo SAN”, aponta.

Em 28 anos, o Brasil atravessou diversos contextos socioeconômicos e políticos, desde sair do mapa da fome até enfrentar novos desafios de Insegurança Alimentar diante da pandemia de covid-19, no governo Bolsonaro.

Além de analisar as propostas de governo sob diferentes eixos temáticos da segurança alimentar e nutricional, a pesquisa investigou como as agendas eleitorais mudaram ao longo dos anos. A hipótese inicial era de que a relevância da SAN cresceria de forma linear, atingindo o pico em 2022, quando a fome voltou com mais com força na pandemia.

Um exemplo citado é a eleição de 2018. Quatro anos antes, em 2014, o Brasil havia saído do mapa da fome da Organização das Nações Unidas, o que significa que menos de 5% da população se encontrava em estado de subalimentação (correspondendo a 7,2 milhões de brasileiros à época). Em 2018, o cenário havia mudado substancialmente: segundo a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) de 2017-2018, 25,3 milhões de domicílios brasileiros (36,7%) apresentavam estado de insegurança alimentar nesse período.

Sistema alimentar de políticas públicas

Segundo a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Lei nº 11.346), o SAN entende que é direito de todos o acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis.

Trata-se de um sistema de gestão intersetorial, participativa e de articulação entre os três níveis de governo para a implementação e execução das Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional, para promover o acompanhamento, o monitoramento e avaliação da segurança alimentar e nutricional do país.

O sistema público visa promover e garantir o acesso à alimentação adequada e a segurança alimentar e nutricional como direito fundamental do ser humano.

Formular, articular e implementar, de maneira intersetorial e com a participação da sociedade civil organizada políticas, planos, programas e ações de segurança alimentar e nutricional em âmbitos nacional, estadual e municipal, com vistas em assegurar o Direito Humano à Alimentação Adequada.