Ler é fundamental para o desenvolvimento do cérebro em mundo dominado por telas
EDUCAÇÃO
Publicado em 20/04/2024

Você jurou que não deixaria a tecnologia ditar sua rotina, mas quando percebe não sai de casa sem o celular, seu filho mais novo assiste a desenhos no tablet e o mais velho só desliga o videogame depois de muito convencimento? Pode ter certeza de que não está sozinho. Nas últimas décadas, os dispositivos provocaram mudanças profundas no nosso estilo de vida, e o erro mais comum, de acordo com a neurocientista Maryanne Wolf, doutora em Desenvolvimento Humano e Psicologia pela Universidade Harvard, é acreditar que nossos cérebros permaneceram iguais depois desse turbilhão.

No recém-lançado O cérebro no mundo digital (Editora Contexto, R$ 59,90), a autora explica, em uma narrativa que mistura conceitos acadêmicos e histórias reais, como as telas criaram novos circuitos de pensamento que ainda não são completamente compreendidos pela ciência. “Nenhum conselho de ética da pesquisa que se dê ao respeito, em nenhuma universidade, permitiria que um pesquisador fizesse o que nossa cultura já fez sem avaliar as evidências disponíveis: introduzir um conjunto completo, quase viciante, de recursos que têm poder sobre a atenção sem conhecer os possíveis efeitos colaterais e ramificações para os sujeitos (no caso, nossas crianças)”, escreve no livro.

Nesse novo mundo regido pela velocidade das telas, Maryanne explica, em entrevista à CRESCER, por que os livros ainda são os principais aliados do desenvolvimento cognitivo do seu filho e dá dicas de como transformar a leitura no ponto alto da rotina dele. A seguir, acompanhe o interessante bate-papo com a autora.

O que acontece com o cérebro das crianças quando elas leem pouco e são muito estimuladas por telas?
Quando a criança aprende a ler, o cérebro faz um circuito, que reflete a maneira com que o pequeno está lendo e o meio em que essa leitura está sendo feita. Os livros estimulam uma leitura mais demorada, com pausas para refletir, criando um circuito de pensamento cognitivo sofisticado que contribui para o desenvolvimento da memória e da imaginação. Já as telas, sempre em movimento, diluem o foco de atenção, estimulam a realização de várias tarefas ao mesmo tempo e privilegiam o processamento rápido de uma grande quantidade de informações sem profundidade. O cérebro, por causa de sua plasticidade, responde aos estímulos que mais recebe, especialmente nos primeiros anos, e desenvolve e aprimora os circuitos mais frequentemente acessados. Essas duas formas de pensar trazem vantagens dependendo da tarefa a ser realizada. O desafio que enfrentamos hoje é o de encontrar equilíbrio. 

Você recomenda um tempo-limite de uso de telas por dia para crianças?
Depende muito do que o pai, a mãe, a criança e a escola priorizam, mas, para a maioria, sim. Não proponho uma regra imutável, mas recomendo que até os 2 anos os bebês não tenham contato com telas. Entre 2 e 5 pode acontecer uma introdução gradual, no começo não mais do que meia hora por dia, e no fim desse período, no máximo uma hora. De 5 a 10 anos, no máximo duas horas diárias. Esse limite é essencial para que as crianças consigam explorar outras habilidades e desenvolver, sem tanta interferência, um circuito cerebral cognitivo sofisticado. [Lembrando que a recomendação da Organização Mundial da Saúde é: até 2 anos, nada de tela; de 2 a 5 anos, no máximo uma hora por dia.

Por que é tão difícil fazer com que as crianças saiam das telas?
As crianças experimentam uma espécie de pico hormonal quando passam tempo excessivo em frente a telas. Quando o cérebro fica engajado nas atividades de processamento rápido que esses dispositivos proporcionam, são liberados hormônios relacionados à recompensa e aos modos de fuga e luta, o que faz com que as crianças queiram passar cada vez mais tempo recebendo esse estímulo. Quando elas interrompem o uso, não ficam simplesmente bravas. É mais do que isso, há uma queda hormonal considerável, provocando e ampliando reações emocionais negativas. Por isso, é muito importante limitar o tempo de uso desde cedo. Muitos pais enfrentam dificuldades mais para a frente porque perdem o controle nos primeiros anos.

Como evitar os ataques de birra na hora de interromper o uso?
O recomendado é oferecer uma alternativa instigante, como a prática de um esporte ou uma brincadeira de faz de conta, em vez de somente pedir ou ordenar que os eletrônicos sejam desligados. Se for possível, estabeleça regras antecipadamente com frases como “você vai jogar videogame por uma hora e depois vamos passear no parquinho”, e ficará mais fácil redirecionar a atenção.

Você acredita que exista uma relação entre déficit de atenção e uso excessivo de tecnologia?
Alguns dos meus colegas psicólogos clínicos estão preocupados por estarmos criando um novo tipo de distúrbio de atenção em função do ambiente que cerca a criança, ao permitir que ela use telas frequentemente. Isso altera a maneira com que os circuitos cerebrais são formados, e não há dúvidas de que alguns pequenos que não têm nenhuma desordem de atenção se comportam como se tivessem quando o uso de telas é interrompido. Ainda não há comprovação científica de que a única causa é o uso excessivo de telas, mas já existem estudos que mostram que ele prejudica a capacidade de concentração e torna a criança mais suscetível ao estado de atenção parcial contínua, que é ter o foco voltado a diversos estímulos simultâneos, mas de maneira superficial.

O que os pais podem fazer para incentivar o pensamento profundo, crítico e analítico nesse mundo dominado por telas?
Primeiro, começar a ler para os filhos quando ainda forem bebês. Poucas coisas são mais importantes, do ponto de vista do desenvolvimento cognitivo, do que ler para as crianças todas as noites e, se possível, durante o dia também. Faça da leitura um hábito prazeroso, cheio de amor e cuidado, e terá leitores ávidos no futuro. Enquanto avança pelas páginas, interaja com o seu filho, discuta a narrativa e ouça o que ele tem a dizer. E por último, mas não menos essencial, seja o exemplo. Não adianta querer que seu filho leia se você passa o dia inteiro com a cara enfiada em smartphones e computadores. Mostre a importância que os livros têm em sua vida,  e as crianças terão um modelo para seguir.

CF310-PING-CEREBROS-DIGITAIS (Foto: Divulgação)

Maryanne Wolf acredita que os livros são os principais aliados do desenvolvimento cognitivo das crianças (Foto: Divulgação)

 

Além de trazerem benefícios cognitivos, como os livros contribuem para o amadurecimento emocional no dia a dia das crianças?
As histórias são um laboratório moral e ético para os pequenos, onde podem testar emoções que ainda não experimentaram com tanta intensidade na vida real. Crianças menores costumam ser muito egocêntricas, e as histórias mostram a importância de ter empatia. Ao se colocar no lugar de um personagem que precisa de ajuda, você entende a importância de fazer algo pelos outros. As histórias nos dão a força para sermos as melhores versões de nós mesmos, nos dão a chance de ver por meio de perspectivas, muitas vezes, diferentes das nossas, e isso ajuda as crianças a entenderem melhor seus sentimentos e maneiras de lidar com eles.

As livrarias têm muitas opções. Como escolher a história perfeita para ler com os pequenos?
A leitura ideal é aquela que o pai, a mãe ou o filho amam. Você transmite emoção quando lê algo que toca seu coração, e o seu filho vai querer experimentar essa sensação. Já quando for a vez de a criança fazer a escolha, dê liberdade a ela, mesmo que considere a narrativa boba ou desinteressante. Na verdade, não importa se a história tem um final feliz ou triste, se incentiva as crianças a ter hábitos saudáveis ou é pura diversão... O essencial é despertar o prazer pelos livros. A leitura não deve ser um momento cheio de regras ou metas claras a serem atingidas. Aproveite a experiência com leveza e as coisas vão fluir de maneira natural, orgânica.

Em O cérebro no mundo digital, você argumenta que livros físicos são melhores do que e-books. Por quê?
Não acredito em um conflito binário entre livro impresso e digital. Para algumas crianças, como as que têm dislexia, audiobooks são uma ótima forma de mantê-las engajadas enquanto não conseguem ler sozinhas. Reconheço que existem diferenças individuais e sempre há exceções. Dito isso, crianças são dominadas pela parte sensorial, e ter a experiência de tocar em um livro, virar a página e vivenciar essa experiência concreta é muito enriquecedor. Há uma dimensão espacial e temporal exclusiva dos livros que nunca será a mesma com a tela passageira e temporária. Livros permanecem, e por isso são um meio melhor para introduzir as crianças no mundo da leitura.

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