Indisciplina ou não: reflexões sobre o comportamento dos alunos em sala de aula
EDUCAÇÃO
Publicado em 20/04/2024

Diálogo, acolhimento e ações planejadas individualmente são mais eficientes do que punições

A sala de aula é um local movimentado, com conversas, brincadeiras e distrações, principalmente nas turmas de Anos Iniciais e Finais de Ensino Fundamental. Nesse ambiente, em que os alunos podem interagir com os colegas, conviver com as diferenças, explorar a criatividade, desafiar a si mesmos e ampliar a visão de mundo, surgem também muitas questões de relacionamento, algumas delas associadas à indisciplina. Mas existe, de fato, uma definição para o que é a indisciplina? 

Evelise Portilho, pedagoga, psicopedagoga, mestre e doutora em Educação e professora do curso de Pedagogia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), lembra que o dicionário conceitua indisciplina como uma violação de regras. “E de quais regras nós estamos falando?”, pergunta a docente. “As regras que geralmente são impostas, que vêm de cima para baixo e que, no caso da escola, o aluno não participou da sua definição e, muitas vezes, não as entende.”

Por isso, Evelise afirma que, ao pensar no conceito da indisciplina, prefere tratá-lo como sintoma de uma escola disfuncional. “A indisciplina como sintoma é quando eu manifesto pelo corpo ou pela fala que alguma coisa não está legal. Então, ela mostra uma escola que está com dificuldade para funcionar, por isso é disfuncional”, descreve. “Se eu parto desse conceito de indisciplina, a disciplina representa a escola onde as coisas estão funcionando.” 

Quais alunos estamos formando

De acordo com as diretrizes da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), as escolas têm como objetivo formar cidadãos críticos, criativos, colaborativos e capazes de enfrentar os desafios do mundo contemporâneo. “A BNCC destaca a importância de uma educação integral, que não se limita ao aspecto acadêmico e leva em consideração o desenvolvimento socioemocional e cidadão dos estudantes”, explica Gilvânia Medeiros Sampaio, professora da Escola de Tempo Integral Cosme Rodrigues de Sousa, em Carnaubal (CE). 

Mestre em Ciências da Educação e responsável pelos componentes de Ciências e Iniciação Científica da instituição, Gilvânia reforça que as escolas buscam não apenas formar alunos com habilidades cognitivas sólidas, mas capazes de resolver problemas, trabalhar em equipe, comunicar-se de forma eficaz e tomar decisões éticas e responsáveis. 

A professora Ana Paula Vieira da Silva, pedagoga e professora de Língua Portuguesa dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental na rede municipal de Curitiba (PR), acrescenta que a BNCC visa ainda articular os conteúdos pedagógicos à realidade e ao contexto social do estudante. “Considera as potencialidades, o conhecimento prévio, o capital cultural que cada um deles traz. É a partir daí que nós planejamos as nossas práticas.” 

Conforme lembra a psicopedagoga Evelise, a BNCC, porém, não trata especificamente da indisciplina. O documento expõe normas e aspectos que os alunos devem seguir para adquirir conhecimentos [como valorização de culturas, comunicação, pensamento científico] e ações que a escola coloca em prática para que eles desenvolvam as competências e habilidades necessárias.

 

“Mas, para tomar consciência de algo, é necessário ter noção de mim, do outro e da tarefa que vou desempenhar. Ao ver esse conjunto de regras, precisamos entender quais valores queremos ensinar”, argumenta Evelise. “Muitas escolas estão desumanizadas, o que também nos leva a questionar sobre quais alunos estamos falando. Um aluno passivo, que não pensa, que não pode ler um livro premiado porque a escola diz que não serve?”.

Onde está a indisciplina?

Assim, entender o que caracteriza um aluno indisciplinado se torna uma questão desafiadora, afinal, a idealização sobre o comportamento dos alunos mudou ao longo do tempo. E, com essas mudanças, professores seguem lapidando conceitos e ressignificando a presença dos alunos em sala de aula. “Eu prefiro uma turma participativa, crianças que perguntam, questionam, argumentam e contribuem. Crianças muito quietas, para mim, não é um bom sinal”, posiciona-se Ana Paula.

Atualmente, as metodologias ativas conferem protagonismo ao aluno e tratam da sua capacidade de construir a sua aprendizagem. “É muito importante que estejamos preparados para reconhecer e incentivar esse protagonismo, oferecendo espaços para que eles expressem suas opiniões, contribuam com ideias e participem ativamente das atividades escolares”, defende Gilvânia. Ao mesmo tempo, “estabelecer limites claros, combinados com a turma, e promover o diálogo garantem que o comportamento permaneça construtivo e respeitoso em relação a todos que participam do processo – colegas, pais e professores”, completa. 

Mas, algumas características podem descrever um estudante indisciplinado – que seria diferente de um aluno ativo –, como:

  • demonstra um comportamento desrespeitoso, que pode variar em gravidade, desde a desatenção completa em sala de aula até agressão física ou verbal contra colegas ou professores;
  • desafia as regras estabelecidas pela escola, interrompendo o processo de ensino e aprendizagem, prejudicando não apenas a si mesmo, mas também seus colegas de classe;
  • recusa-se a seguir as instruções dos professores e perturba a ordem em sala de aula;
  • não cumpre prazos ou tarefas escolares.

 

A professora Gilvânia pondera que é necessário olhar para esses comportamentos com empatia, no sentido de entender as razões que estão por trás deles, e oferecer o apoio adequado para conseguir uma mudança positiva. Ela considera, por exemplo, que o estudante pensar diferente do professor é algo totalmente aceitável, mas que em um ambiente mais conservador essa atitude pode ser considerada falta de respeito. “Por isso, é fundamental uma boa formação, para que a gente saiba que não é dono do conhecimento e que nem mesmo a ciência é eterna.”

Há situações comuns que podem surgir e ser confundidas com indisciplina. Gilvânia destaca três:

Questionamento do aluno

Quando um estudante faz perguntas para entender melhor um conceito ou esclarecer dúvidas, isso não é indisciplina. Pelo contrário, o questionamento pode ser uma demonstração de interesse e engajamento na aprendizagem.

Estudante que contraria uma ideia do professor

Se o estudante expressa uma opinião diferente, mas de forma respeitosa e fundamentada, isso não é considerado indisciplina. A diversidade de ideias e perspectivas é importante.

Intervenção em discussões

Às vezes, os estudantes podem intervir em discussões para compartilhar experiências pessoais ou pontos de vista adicionais. Contanto que isso não interrompa indevidamente o andamento da aula e seja relevante para o tema em discussão, não é considerado indisciplina.

 

Causas da indisciplina e plano de ação

 

A professora Ana Paula explica que, geralmente, meninos e meninas indisciplinados apresentam um histórico de violência e agressão nas famílias, o que acabam transferindo para o ambiente escolar. “É muito importante conhecer cada um deles e saber das suas particularidades para poder traçar um plano de ação, seja ele dentro da escola ou colaborativo com a área da saúde.” 

Entretanto, ela reforça que crianças falantes não são sinônimo de indisciplina. “Quando acontece de uma turma ser mais agitada, as estratégias iniciam dentro da própria unidade, seja remanejando alunos, quando há possibilidade, conversando com a família ou tentando apoio de psicólogos.” 

Segundo a psicopedagoga Evelise, o comportamento de indisciplina ou até mesmo de passividade em excesso está sempre dizendo alguma coisa e os educadores precisam estar atentos. “É um sintoma do que o aluno está sentindo e aparece nas atitudes que ele tem. Não adianta puni-lo para que ele possa tomar consciência e disso vir a autorregulação. Ele precisa que o adulto o ajude a entender a situação, para que possa se supervisionar, se avaliar e observar o que está fazendo bem ou não.”

Jadson Rodrigues, gestor da Escola de Tempo Integral Cosme Rodrigues de Sousa, segue o mesmo pensamento: “A gente tem que conseguir enxergar qual é o fator provocador dessa indisciplina. Nós temos o aluno indisciplinado socialmente, no seio familiar, com os estudos e com as relações interpessoais. Mas o que inquieta esse aluno? E como a escola está se posicionando sobre isso?”, questiona.

Para ele, também há na comunidade escolar um incômodo em relação ao jovem sem perspectiva, sem propósito, algo que vai na contramão do que idealiza a BNCC. Nesse ponto, Jadson entende que pode existir um conflito [dentro do aluno indisciplinado]: “Será que essa visão da Educação, que pretende desenvolver tantas competências e habilidades, não fortalece um projeto de vida que acaba falando mais sobre as expectativas da sociedade do que das expectativas desse aluno?”, questiona. 

Encontrando caminhos

Jadson diz que o estudante indisciplinado costuma ser visto como rebelde, mas cabe à gestão escolar fazer a mediação. Ao mesmo tempo em que estabelece regras, ela também deve tentar encontrar possibilidades para que esse indivíduo percorra o caminho que idealizou.

Foi isso que ocorreu na Cosme Rodrigues de Sousa, quando a escola precisou lidar com uma aluna que, de acordo com Jadson, era vista como mobilizadora da confusão, do problema e da indisciplina. “A solução mais fácil seria uma transferência, mas começamos a nos perguntar se iríamos ‘tirar os ruídos ou incorporá-los à melodia’ e mostrar ao aluno um lugar que o acolhe e, acima de tudo, valoriza a sua evolução”, conta. “Então, aproveitando a nova fase da escola [de tempo integral], a indagamos: que nova fase você quer viver?”. 

O gestor e toda a equipe pedagógica conseguiram melhorar o diálogo com essa aluna a partir dos planos que ela mesma relatou: terminar a escola, começar a trabalhar com 16 anos e comprar uma moto. Nesse contexto, ele cita o Programa Pé-de-Meia, a poupança do Ensino Médio criada pelo governo federal, como um estímulo para a realização desse sonho. 

 

“Como educador, compartilhando tais reflexões e experiências, gostaria de contagiar meus colegas para compreenderem a indisciplina a partir do viés da inquietude. Enquanto escola, precisamos enxergar esse aluno como uma história de vida diferente, alguém que deve voltar a encontrar o seu protagonismo”, ressalta. “Gostamos de comemorar resultados educacionais, mas também devemos celebrar vidas transformadas pela educação pública”, conclui o gestor.

 

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