Iniciativas Brasil afora defendem o andar a pé como um ato político e de transformação da nossa relação com a cidade e as pessoas.
Pé ante pé, andamos. Os olhos se perdem na confusão cinza, marrom, vermelha e, eventualmente, verde nas ruas. Lojas abertas/fechadas, casas, aqui era um bar e ali tinha uma banca de revista. Um homem vem ao longe. A sensação é que se sua fisionomia for focada, será possível definir sua idade, ocupação e afiliações políticas. E, então, ele passa e se mistura à multidão. Na via que mal se sabe o nome, o volume de carros é grande. O chão chega a vibrar com um ônibus que passa lotado. Sol e calor. Batidas, vozes, sons eletrônicos, freadas, buzinas… a trilha sonora faz tudo parecer caótico, mas, a verdade é que está tudo no seu devido lugar. Ou melhor, no lugar de sempre. Embora cada um faça parte do cenário, nem sempre as pessoas estão atentos a ele. É aí que a mobilidade a pé faz a diferença! Caminhar faz bem ao corpo, à mente… e à cidade. Para além da poética presente no vento batendo no rosto, seguir a pé é um ato político. Ocupar as ruas e se apropriar de espaços públicos são atos importantes para a vida comunitária. É por meio dessa apropriação que se aprende a criticar serviços prestados, agir, lutar por direitos e curtir a cidade, além de garantir que todos tenham acesso a espaços de convivência melhores. Contudo, primeiro, é preciso conhecer o entorno. Nada melhor do que fazer isso a pé.
Essa é a defesa do Apē – Estudos em Mobilidade, grupo paulistano que se empenha em construir coletivamente conhecimentos sobre mobilidade urbana, cidade e educação. Fundado em 2012, a associação sem fins lucrativos surgiu do encontro de estudantes universitários, em sua maioria da Universidade de São Paulo (USP). Na ocasião, o intuito era debater o uso e a apropriação da cidade, bem como suas formas de vida.
“Na época, alguns alunos notaram que a discussão sobre mobilidade urbana na grade curricular dos cursos que frequentavam estavam muito atreladas às questões técnicas de trânsito, pautadas pelo urbanismo tradicional. E já estávamos vivendo uma nova discussão sobre mobilidade urbana, uso e apropriação da cidade. Então, nos unimos para estudar”, conta Julia Anversa, arquiteta, urbanista e educadora da associação desde a sua fundação.
Outro incentivo para o surgimento do grupo foi a Lei Federal da Mobilidade Urbana (nº 12.587/2012), destinada aos municípios com população acima de 20 mil habitantes. A partir daquele momento, tais cidades deveriam elaborar e apresentar um plano de mobilidade urbana, com a intenção de planejar o seu crescimento de forma ordenada.
Essa lei suscitou na comunidade acadêmica novas maneiras de pensar em modos não motorizados de deslocamento, transportes coletivos e acessibilidade. “Passamos a estudar o plano e textos, em sua maioria estrangeiros, sobre mobilidade a pé e de bicicleta e como isso poderia ser promovido nos grandes centros”, completa a educadora. Além de Júlia, fazem parte do grupo as arquitetas e educadoras María Fernanda Arias Godoy, Marieta Colucci, Tayná Messinetti e mais outras 15 pessoas de profissões diversas.
A defesa pela caminhada começa com o entendimento de que modos lentos de transportes transformam a nossa relação com a paisagem e com as pessoas, além de serem mais seguros (com menos acidentes e mortes) e menos poluentes. Andar a pé é ainda a forma mais democrática de deslocamento. Mas, claro, há seus desafios.
“Uma coisa é você morar no centro, trabalhar no centro e incentivarmos que seu deslocamento seja feito de forma ativa, até por questão de saúde. Outra é você morar na periferia, distante do seu local de trabalho. Assim, a defesa dos modos ativos e da caminhada pelo território compreende uma reestruturação da lógica urbana. Não adianta continuar fazendo bairros dormitórios a longas distâncias e achar que a mobilidade será resolvida com o incentivo para que as pessoas andem a pé”, alerta Julia.
Assim, para chegar a raiz do problema, é preciso que a sociedade dialogue não só mobilidade e urbanismo, bem como outros temas diversos: desigualdade, direito à cidade, questões de gênero e etárias. Por isso, a educação está no centro da atuação do Apē – Estudos em Mobilidade. Discussões internas logo viraram encontros abertos ao público. A associação promove ainda hoje formações de professores, intervenções, consultorias, palestras com autores dos textos lidos, participa de congressos e, junto de outros atores, passou a desenvolver boletins técnicos. Entre os temas já discutidos, passe livre, linhas de ônibus e metrô 24 horas.
ANDAR A PÉ É UM BOM COMEÇO
Nas escolas, o foco são as crianças. Considerando a cidade como um território de aprendizagem, o Apē – Estudos em Mobilidade propõe a apropriação e ocupação de ruas e demais espaços públicos para a compreensão e transformação das realidades. “Falamos muito sobre a educação integral (não de tempo integral), que entende o jovem como parte da comunidade. Ele só consegue se relacionar com ela andando a pé. Então, montamos grupos e caminhamos em torno das instituições. É uma forma dele ser impactado de forma multissensorial pela cidade”, explica Julia.
A arquiteta ainda destaca que há movimentos em que pessoas se juntam para defender, por exemplo, espaços públicos no seu bairro, “mas, tudo começa quando você é impactado pela realidade ao seu redor. Andar a pé é um bom começo”.
Por meio do projeto “Exploradores da Rua”, as educadoras levam crianças para conhecer, aprender e explorar o ambiente urbano. Ao fim do percurso, são incentivadas a desenhar o que melhoraria no trajeto.
E, além disso, um grupo de crianças andando na rua, segundo a educadora, causa efeito imediato na comunidade. “As pessoas se desacostumaram de vê-las na rua. Ainda mais em uma cidade que não foi feita por/para crianças. Ao mesmo tempo, há uma nostalgia dessa liberdade que perdemos nos confinando. Impactadas por esses grupos de crianças andando pela cidade, as pessoas se tornam mais preocupadas, cuidadosas e gentis”, conta.
MOBILIDADE A PÉ, CIDADANIA SEM MEDO
Com base em pesquisa realizada em 2017 pela Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), estima-se que 40% dos brasileiros se deslocam a pé. E, se incluídos os 28% que se deslocam em transporte coletivo, que permite trecho a pé no início ou no final da jornada, os deslocamentos a pé chegam a 68% do total. Ou seja, em torno de 130 milhões de pedestres se movimentam pelas ruas brasileiras todos os dias.
No entanto, ainda assim, veículos motorizados individuais predominam nas vias, chegando, em algumas cidades, a ocupar mais de 80% do sistema viário circulando ou mesmo estacionado.
Defender uma cidade mais amigável para pedestres é o foco de coletivos como o Apē – Estudos em Mobilidade, que, aliás, não está sozinho nessa luta. Diversos outros grupos defendem a caminhada por meio de mobilização, pesquisas, educação e comunicação. Entre eles, o Caminha Rio, no Rio de Janeiro, que realiza ações com foco em uma cidade mais amigável para pedestres, com forte atuação junto ao poder público; o Cidade a Pé, em São Paulo; o Carona a Pé, com foco no deslocamento de crianças, promove a realização de caronas a pé para aquelas que vão às escolas; e a Caminhada Jane Jacobs Floripa, que realiza caminhadas pela capital catarinense com conversas sobre a história de locais visitados.
O antigo coletivo SampaPé! foi um dos responsáveis por conseguir o projeto “Paulista Aberta”, que fecha a avenida Paulista, em São Paulo, todos os domingos, das 9h às 17h. E o movimento Olhe pelo Recife – Cidadania a Pé, mapeou os problemas na capital pernambucana relacionados ao deslocamento a pé na cidade, levando-os aos gestores.
A capital paulista conta ainda com o “São Paulo a Pé”, promovido pela SPTuris – empresa municipal de promoção turística e eventos. O projeto reúne roteiros curtos que, utilizando tecnologia Google Maps de geocodificação, podem ser personalizados, por exemplo, “Cultura na Avenida Paulista”, “Cultura Oriental na Liberdade”, “Rua Oscar Freire e arredores” etc.
Em comum, o desejo de uma cidade mais humana, que possa ser vista, sentida e vivida com segurança por meio da mobilidade a pé.